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Algo em que devemos crer como fundamento de uma educação popular de vocação freireana

Carlos Rodrigues Brandão

Crer no primado da Pessoa Humana. Partir de que sendo entes inacabados e originalmente imperfeitos, mulheres e homens são seres capazes de um perene aprender.  Seres destinados a um contínuo e crescente “acabamento” e de um permanente aperfeiçoamento. Seres devotados a individualmente se transformarem. E seres destinados a coletivamente transformarem os seus mundos e vida e de trabalho.  Em nossas vidas o próprio trabalho produtivo pode ser temporário, mas “o aprender é para sempre”.

Crer no valor do   saber original que habita o coração e a mente de toda e qualquer pessoa. Cada ser humano, quem quer que seja, é em si-mesmo uma fonte original, única e irrepetível se seu próprio saber. O saber que habita cada pessoa não pode ser mensurado hierarquicamente. Nós não sabemos mais ou menos do que os outros. Sabemos de modo diferente. E é esta diferença não mensurável o que torna o diálogo a vocação e a experiência fundadora de uma educação humanista realizada através de uma pedagogia crítica e emancipadora. 

Considerar como um ponto de partida a vocação humana ao diálogo e à partilha de saberes, de sentidos, de significados, de sensibilidades e de sociabilidades.  Crer na vocação ao diálogo como o fundamento do que nos faz sermos seres humanos; seres conectivos, recíprocos e, portanto, seres vocacionados a um interativo aprender-a-saber. A um com-saber.

Uma pedagogia popular de vocação freireana somente se realiza em sua totalidade quando fundada na plena acolhida da pessoa do Outro, da Outra. No profundo respeito ao seu ser, ao seu proceder e ao seu saber-de-origem. Logo, educar sobre o fundamento de que o diálogo não é apenas um método a mais na prática do ensinar-e-aprender. O diálogo está situado no centro do começo de todo o trabalho pedagógico; ele conduz ativamente um ensinar-e-aprender ao longo de todo o seu processo; e ele se realiza em sua destinação sempre imprevisível e inacabável. Não lançamos mão de métodos dialógicos para ensinar-a-aprender. Ensinamos e aprendemos para nos tornarmos cada vez mais conscientes e críticos sujeitos-de-diálogos.

Partir do princípio de que nós não somos seres humanos porque somos em essência apenas “seres racionais”, ou “seres sociais”. Somos seres humanos porque somos “seres aprendentes”.  Somos seres vocacionados ao ensinar-e-aprender, não como uma ação complementar, ou mesmo passageira e secundária em nossas vidas.  O afeto e o saber constituem a partilha mais humanizadora viável. E mutuamente aprender-o-que-se-ensina e ensinar-o-que-se-aprende constituem a nossa maior vocação, e a nossa mais desafiadora ação de reciprocidade. Negar a qualquer pessoa o direito essencial ao saber e à partilha do saber, é negar a ela o seu direito a realizar-se como uma pessoa humana.

   Acreditar que sendo afetuosa e essencialmente acolhedora, dialógica e também participativo-construtiva, a educação emancipadora de vocação freireana é bem mais uma construção compartilhada e solidária de saberes, do que um processo individualizado de aquisição de conhecimentos. Aprendemos aquilo que ajudamos a constituir como um conhecimento; como um com-saber. Assim sendo, conhecer algo não é apenas adquirir um saber-para-si, e para um proveito  apenas individual. Compreendemos algo quando fazemos parte da comunidade que partilha conosco o que apendemos para compreender.

Mesmo quando em um projeto culturalmente pedagógico existam elementos a serem preservados e conservados como criações culturais, como valores e como saberes, devemos acreditar que a educação deve ser pensada e vivida como um fator de transformação. Ela é transformadora em direção ao ser-mais de cada participante de seu próprio processo. A vocação de aprender não se reduz a uma aquisição, a um saber-mais. Ao contrário. Aprender-a-saber serve a tornar quem aprender um alguém pessoal e interativamente melhor. Não aprendemos para competitivamente sermos mais e melhores do que os outros. Mas para sermos a cada passo nós-mesmos, progressivamente transformados em um progressivamente mais-e-melhor-do-que-eu-mesmo-sou.

Crer que a educação não se dirige a capacitar funcionalmente o indivíduo competente-competitivo, destinado funcionalmente à reprodução do “mundo do mercado”. Ela vocacionalmente devota-se a formar, através do saber, a pessoa consciente-cooperativa destinada à transformação de sua vida  e à recriação de sua sociedade.

Crer que uma educação inovadora, dialógica e emancipadora não deve ser um acontecer de reciprocidades apenas conectivo, intelectual e racional. A educação deve envolver o todo do ser-de-cada-pessoa. Ensinamos-e-aprendemos com a mente e o coração, com a razão e a emoção, com o corpo e o espírito, com o cérebro e as mãos.

Em direção oposta a projetos e processos de uma pura e simples capacitação instrumental, segundo processos de “instrução programada” de especialidades, de habilidades e de competências, a educação emancipadora deve centrar-se em seu propósito de dialogicamente formar, conformar e transformar a integridade de cada pessoa, e de todas as pessoas. Não somos seres programados e programáveis. Uma das apostas da educação popular freireana é o imprevisível, o não-determinado do ser humano. Também dentro de nós reside o “inédito viável” de Paulo Freire.

Crer que uma educação de vocação popular deve estar a serviço de todos, indistintamente. Mas acreditar que em uma sociedade desigual e excludente são os mais excluídos, os mais postos à margem, os mais “esfarrapados e oprimidos”, os seus sujeitos preferenciais. A educação popular de vocação freireana destina-se com prioridade a um povo educando-educado, destinado a se tornar consciente de seu valor e de seu lugar na construção de uma sociedade regida pela liberdade, pela justiça, pela inclusão, pela partilha, pela reciprocidade, assim como pelo incremento de patamares crescentes de igualdade social, ao lado do direto à diferença. Enfim, uma sociedade devotada à construção de um mundo em paz e de paz.